terça-feira, 13 de outubro de 2009

Todas as Histórias do Mundo!!!


Em algum lugar está escrito, na febril e infindável produção de Borges, que todas as histórias narradas pelo homem podem ser reduzidas a quatro: a história da cidade sitiada, a história de uma viagem, a história de uma pesquisa e a história do sacrifício de um deus. Estas – segundo o cego vidente de Buenos Aires – são as histórias que narramos desde sempre e que para sempre narraremos.

Creio que se possa tentar uma simplificação e reduzir todas as histórias a duas, ambas infinitas: aquela que segue um itinerário retilíneo, peremptório, previsível e planificado e aquela que segue um itinerário curvilíneo, livre, caprichoso e imprevisível.

Poderia haver um terceiro tipo, aquele circular, no qual a previsibilidade da reta e a ondulação da curva se interpenetram, como na eterna teoria do eterno retorno: o ano perfeito especulado por Platão no Timeu, no qual os sete planetas, uma vez equilibradas as suas diferentes velocidades, retornariam ao ponto de partida; os infinitos nascimentos, mortes e renascimentos descritos por Demócrito, Nietzsche e Blanqui; a repetição de ciclos semelhantes, mas não idênticos, proferida por Heráclito, com o seu mundo gerado pelo fogo e que o fogo perenemente devora.

E poderia existir ainda uma quarta história: a da linha em espiral que ao infinito se lança e do infinito redobra: como Eros e Psiquê, narrado por Apuleio, no interior do conto mais vasto das Metamorfoses. Como a história sugerida por Ítalo Calvino na circunlocução: “Eu escrevo que Homero narra que Ulisses escuta o canto das Sirenes que cantam a Odisséia.” Ou como as histórias inventadas por Sherazade ao rei persa Shariar, a fim de distraí-lo da sádica tentação de assassiná-la, como já havia feito com as suas outras esposas, que a haviam antecedido: histórias narradas por personagens de outras histórias, que, por sua vez, contêm outras histórias, encaixando-se uma dentro da outra, como as famosas matrioskas russas.

Não gosto de me deixar levar pela suave perversão dos labirintos. Prefiro entrever, nas nossas aventuras humanas, infinitas linhas retas e infinitas linhas curvas, que se alternam, se entrecruzam e se entrelaçam ao longo de toda a história secular que nos fez homens. Sempre com a esperança da quadratura do círculo.

HARD E SOFT

Em torno da dicotomia “reta e curva” sempre houve uma disputa, como na epistemologia, quanto ao dilema entre “ciência hard” e “ciência soft”, a autopoiese e a heteropoiese, o método e a sua ausência, a ordem e a desordem, o geral e o particular, o necessário e o possível, a lei e o acaso, a previsibilidade e a imprevisibilidade, a falibilidade e a infalibilidade, assim como a objetividade e a subjetividade.

Quando os termos dialéticos são assim tão conflituais, é impossível permanecer neutro. Tomem os dois maiores arquitetos deste século, Le Corbusier e Oscar Niemeyer. O primeiro é franco-suiço racionalista. Não pode deixar de ser a favor da linha reta: “A curva é cansativa, perigosa e funesta, possui um verdadeiro efeito paralisante... A estrada curva é um resultado arbitrário, fruto do acaso, do descuido, de uma ação puramente instintiva. A estrada retilínea é uma resposta a uma solicitação, é fruto de uma intervenção precisa, de um ato de vontade, um resultado atingido com plena consciência. É algo útil e belo.”

Niemeyer é brasileiro, ou melhor, mestiço, pois em suas veias conflui sangue árabe, espanhol e alemão. Eis, portanto, a sua declaração sobre o mesmo campo: “Não é o ângulo reto que me atrai e nem mesmo a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual... De curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein.”

A linha reta é limitada por suas próprias regras, por seus próprios binários, que a impedem de desviar. Se varia, ja não é mais reta. A linha curva, pelo contrário, passa por onde quiser, encontrando a sua razão de ser na sua própria liberdade: como as aves no céu, as embarcações no mar e os adolescentes na vida.

Calvino confessava: “Prefiro confiar na linha reta, na esperança de continuar até o infinito e tornar-me inatingível.” Carlo Levi preferia alimentar uma esperança diversa: “Se a linha reta é a mais curta entre dois pontos fatais e inevitáveis, as divagações a prolongarão: e se essas divagações se tornam tão complexas, tão emeranhadas e tortuosas, tão rápidas que não deixam rastro, talvez a morte não nos teste mais, talvez o tempo se perca e possamos ficar ocultos nos esconderijos mutáveis.”

PRECISÃO E APROXIMAÇÃO

Assumamos a linha reta, dura e inflexível como metáfora das ciências exatas, da tecnologia, da racionalidade e de tudo aquilo que, segundo Koyré, podemos chamar de “universo da precisão”. E assumamos a linha curva como metáfora do humanismo, da arte, da poesia, da estética e da emotividade, de tudo aquilo que evoca o “mundo da aproximação”. A história humana inteira pode ser lida como cursos e re-cursos dessas retas e curvas, desse mundos e universos; como a alternância entre crescimento espiritual e crescimento material, como fases silentes e fases rumorosas, nas quais a razão e a emoção de vez em quando se camuflam. Mas talvez, finalmente, seja possível uma síntese.

Durante milênios, até o final do século XVIII, a humanidade viveu sob a égide da aproximação, do misterioso, do mágico, do emotivo, desarmado diante das pestes, dos raios e das invasões. Em seguida, o Iluminismo e a Industrialização descobriram e privilegiaram as forças libertadoras da razão, consentindo que se impusesse com uma tal presunção que não tardou a transformar-se em tirania.

Mas a aproximação da sociedade rural e a precisão da sociedade industrial poderiam ser tomadas como tese e antítese de um processo histórico finalmente capaz de aportar, com a sociedade pós-industrial, numa síntese feliz. Consumada a experiência da racionalização extrema, conferidas às máquinas todas operações que requerem velocidade, repetição e precisão, hoje o homem pode finalmente usufruir, pela primeira vez na história, a sorte de ser saudável, culto, longevo, nômade e, ao mesmo tempo, sedentário, sereno, contemplativo e solidário.

Uma vez entregue a precisão às máquinas, ainda falta recuperar muitos aspectos da aproximação, que já não será mais aquela rude e primitiva da época rural. Salvaguardados os ganhos da experiência industrial, estes devem transformar os limites em oportunidades, conjugando a competição com a generosidade (cooperação) e a lucidez racional com o calor emotivo. Os nossos netos poderão dedicar-se à estética até porque os nossos avós dedicaram-se aos negócios, segundo a sucessão já destacada por Jhon Adams: “Devo estudar a política e a guerra, para que os meus filhos tenham a possibilidade e possam assim dar aos filhos deles a possibilidade de estudar pintura, poesia, música e cerâmica”.

Para ter a certeza das coisas que foram ensinadas”, (Evang. De Lucas 1:4).

Paulinho Almeida.

Tempo de vida...

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