Já se definiu o homem como um ser que nasceu para resolver problemas. Contudo, o primeiro problema que precisamos resolver é justamente este: quais são os nossos problemas cruciais?
Allan Bloom, no seu O declínio da cultura ocidental, queixa-se da falta de profundidade e altitude intelectual dos muitos jovens universitários que conheceu. A título de exemplo, conta que, perguntando aos alunos o que é o mal, obteve certa vez a resposta unânime e imediatista: "Hitler". Com efeito, Hitler não passa de uma referência histórica, é apenas uma imagem ou uma metáfora das crueldades do século XX, não uma definição metafisicamente válida do mal. Foi mau, mas não é o mal.
E em geral, criticamos a falta de leitura pelos prejuízos imediatamente visíveis: a incapacidade de se fixar às formas ortográficas das palavras, porque nunca são lidas, e escreve-se então "adevogado", "excessão", "femenino" ou "escassês"; a incoerência gramatical (que revela uma incoerência lógica), como nas frases tantas vezes ouvidas: "Veio os homem", "Isso é para mim fazer", "Você quer que eu faço?", e outras do gênero; um vocabulário pobre, que limita e atrofia o próprio pensamento; ou até mesmo a dificuldade de determinar a dose correta de um remédio infantil usando uma tabela de peso e altura da criança.
Sem tornar a leitura o 11o. mandamento da lei de Deus, devemos ressaltar, contudo, o que de mais prejudicial pode acontecer com alguém que não tenha o hábito de ler: sua pobreza e sua insegurança existenciais. Certa livraria caracterizou muito bem essa deficiência através do slogan "Ler ou não ser". E, para citar um exemplo trágicômico, li certa vez numa redação escolar a palavra "séquiço", irresponsabilidade ortográfica que mostrava, com certeza, que o autor da redação nada ou pouco lera sobre o assunto. Dupla irresponsabilidade!
Ou se é pleno ou se é plano. Ou a pessoa se preenche de idéias, e se eleva, ou passa a caminhar no nível mais horizontalizante, que tende ao declive, ao infra-humano. E boa parte da plenitude intelectual de que tanto sentimos falta obtém-se na leitura, nessa agricultura mental que consiste em colher das palavras o sabor e a substância.
Guimarães Rosa falava das pessoas analfabetas para as entrelinhas. Ler, na verdade, é mais do que decodificar um texto. A leitura eficiente vê o não escrito. Exatamente como devemos nós, ao consultar um plano de saúde que nos é proposto, deduzir os serviços e necessidades que não são cobertos pelo plano.
Uma leitura das entrelinhas é uma leitura meditada. Meditar, aceitando uma etimologia imaginária (mas muito sugestiva), é me ditar, é ditar-me palavras maduras, que nascem da reflexão, do desejo de ouvir em minha mente uma voz mais pura, mais verdadeira.
Voz capaz de sussurrar o que realmente é importante, ou seja, o que contribui para a humanização do homem, tão propenso a permitir que seus instintos mais baixos... falem mais alto.
A leitura não é, na sua forma legítima, uma fuga da realidade. É uma fuga para a realidade. Mas exige do leitor uma qualidade, um interesse, uma preocupação. O desejo sincero de encarar os grandes problemas, sem querer resolvê-los, dissolvê-los, extingui-los, como se o ser humano fosse onipotente. Porque também somos tentados pela pretensão de ser mais altos do que somos.
Jonathan Swift, no lidíssimo Viagens de Gulliver, mostra-nos o náufrago aprisionado por aqueles corajosos habitantes de Lilipute. Sim, tinham ali um grande, um enorme problema! Como alimentar aquele monstro? Como mantê-lo vivo e preso ao mesmo tempo? E entre os variados conselhos que o rei daquele povo recebeu um deles destacava-se pela praticidade: o melhor, recomendava um dos liliputianos, seria matar o "homem-montanha" de fome ou com setas envenenadas. Solução rápida e definitiva, que não resistiu a uma reflexão teórica um pouco mais imaginativa.
Pois, liquidado o gigante, o que fazer depois com seu cadáver? Como enterrá-lo? Aquela carcaça gigantesca apodreceria, e com certeza poderia causar uma peste que se alastraria por todo o país, matando a população inteira. Um problema assim tão facilmente resolvido acarretaria um problema agora sim insolúvel.
E temos aí uma bela metáfora.
Muitos dos gigantescos problemas que surgem subitamente nas nossas praias como coisas que vêm dos mares desconhecidos e são quase infinitamente maiores do que nós, e podem nos esmagar, e são de fato impossíveis de remover, quando finalmente liqüidados tornam-se mais perigosos e fatais. Se eu "mato" o problema da morte com as setas envenenadas da superficialidade; se eu "mato" o problema do amor aplicando-lhe o golpe do pragmatismo; se eu "mato" o problema do bem e do mal com o estrangulamento do relativismo, é a mim mesmo que estou matando. Esses problemas, aparentemente resolvidos, continuam a existir na forma de focos de doença.
A solução imaginada no livro de Swift também é instrutiva. Resolveram propor a Gulliver que, em troca de liberdade e alimento, obedecesse a oito artigos de um verdadeiro contrato. O gigante deveria cumprir uma série de exigências: não se deitar nos campos de trigo, tomar cuidado para não pisar em nenhum dos pequenos habitantes do reino, ajudar nos correios mais urgentes, na guerra contra os inimigos, nos trabalhos em que fosse preciso transportar grandes pedras, enfim.
E é justamente esse contrato de convivência que uma pessoa deve estabelecer com os grandes e à primeira vista intratáveis problemas da vida. Problemas cruciais, cruzes pesadas e dolorosas. Um contrato em que possamos administrar os problemas, tirando o máximo partido deles.
Os escritores geniais nos ensinam que o conflito, o medo, o ódio, o mal são condimentos necessários para que a história seja uma boa história! E os administram para o próprio bem da história. O adultério, por exemplo, desagradabilíssimo episódio na vida de qualquer casal, torna-se, nas mãos de um Machado de Assis, de um Nelson Rodrigues, de um Evelyn Waugh, de um Dostoievsky, uma visão lúcida dos abismos. Nos quais a queda é tantas vezes inevitável.
Os grandes problemas da vida prenunciam catástrofes, desfechos trágicos, assassinatos e suicídios, mas podem também ser o ponto de partida de eucatástrofes, termo inventado pelo escritor inglês J.R.Tolkien que significa um desfecho pleno de luz e de sentido, quando o mal, o erro, a injustiça são re-harmonizados numa história que, contada, organiza o real de modo que possamos aceitá-lo tal como é, e conviver com ele, e dele obter a sabedoria.
Uma pessoa capaz de ler o mundo como uma história terrível e no entanto maravilhosa concilia em si o desconcerto e a esperança, o medo e o amor. E é na leitura amorosa dos livros, dos grandes livros, que conseguimos desenvolver esta capacidade. Capacidade de perceber na história do mundo e na biografia pessoal uma continual allegory, como escrevia o poeta John Keats, uma ficção que diz o que está interdito, insinua uma verdade nua, que mataria numa visão direta.
Talvez nosso maior problema seja este: não suportar sequer a hipótese de olhar nossos maiores e intoleráveis problemas. O que é compreensível, e até humano. Mas o homem sonha à noite, e nestes sonhos a fantasia denuncia a realidade. Ler é sonhar acordado. É acordar do falso sonho dos imediatistas. E despertar para a real função da linguagem: "exprimir as relações das coisas" (Simone Weil).
Num mundo assintático; em que o telejornal é o distintivo típico, com seus "blocos" sucessivos, sem coordenação ou subordinação, dentro dos quais um desastre aéreo, o nascimento de um jacarezinho no zoológico, o Dia das mães, a corrupção política, o Japão e o nordeste, a receita culinária e o assassino cruel são mostrados num mesmo plano, como se fossem todas as notícias importantes, sem um "porém", sem um "portanto" que os relacione, concretizando em nossas mentes, afinal, o absurdo, e nos deixando sem ação, a leitura inteligente que faz pensar, inteligir (intus + legere = ler dentro), torna-se condição de sobrevivência.
Ler ou não ser. Ler ou não ver. Ler ou não ter a força criativa de organizar com os olhos o volume e o peso do caos.
Pare e leia, pare e pense, pare e repense...
Pense nisso!!!
Paulinho Almeida.
Tempo de Vida...
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