O
extraordinário Salmo 23.
É difícil fazer uma interpretação precisa de um versículo num contexto como
este. Já tentei discernir o texto por vários ângulos, utilizei traduções
diferentes, visitei o original hebraico, analisei interpretações de
especialistas…
Mas para ser
honesto, o que aqui lhe trago é apenas a minha forma de percebê-lo. E não
apenas isso, mas também o meu desejo de encarná-lo na vida, existencializar a
poesia transformando letra em carne, mesmo sabendo que, muito provavelmente,
não era isso que Davi tinha em mente quando o escreveu.
Minha escrita eu
construí a partir de um sem número de observações… fui ouvindo as pessoas, anos
seguidos, e de tanto ser exposto aos seus medos, dramas e dores, formatei esta
imagem alegórica que hoje carrego em mim, não me sai da cabeça…
A sensação que
tenho é de que há gente que mais se parece com postes por onde passam imagens,
sons, palavras, ações e sentimentos. Elas possuem centenas de “fios
emaranhados”, muitos dos quais desencapados, em flagrante perigo. Creia-me, há
pessoas que se especializaram em construir “gambiarras” na alma; é tanto “liga”
aqui, “desliga” ali, que, ao depois, não se sabe mais o que leva ao que…
Essas “interseções
de fios” nada mais são do que os relacionamentos que travamos, sejam afetivos,
familiares, profissionais ou de amizade, os quais, por vezes, entram em “curto
circuito” por motivos dos mais diversos. É triste, mas me parece que à medida
que o tempo avança e “devora” a vida, tanto mais as pessoas vão se tornando
solitárias, muitas de suas relações, literalmente, acabam se “incendiando”,
terminam em cinzas e silêncio.
Por isso, no meu
“Salmo 23”, peço a Deus para por na minha presença uma mesa onde estejam todos
os meus desafetos. Sim, digo isto porque você não senta com inimigos a mesa,
você os enfrenta no campo de batalha. Pedir uma mesa na presença de adversários
é algo, provavelmente, impensável, eu sei, mas é esse o meu desejo.
O motivo é bem
simples: essa mesa pode ser a única possibilidade de reatar laços partidos,
resgatar amigos perdidos, reaver momentos que seriam bons, mas que foram
desperdiçados para sempre…
Nessa mesa eu
poderia usufruir de gargalhadas que nunca serão dadas, e de alegrias não
experimentadas, abraços que foram esquecidos, mãos que não mais se tocaram e
até lágrimas de solidariedade que, com absoluta convicção, me teriam serventia
como consolo e abrigo nos dias cinzentos, dias de sombras e solidão.
No meu “Salmo 23”,
a mesa se põe na presença dos inimigos para que eles possam novamente se sentar
ao meu lado, para que seja possível haver perdão, cura e libertação.
Na minha mesa, o
óleo que desce sobre a cabeça sara a consciência e produz saúde que pacifica a
alma, e o cálice está sempre transbordando o vinho da alegria, deixando vazar o
regozijo que há quando na vida torna-se possível o reencontro, a reconciliação.
Quão bom seria
poder sentar nesta mesa, fosse eu convidado de outrem, fosse o anfitrião da
festa do perdão. Pena que a realidade nos revele um cenário tão diferente, pois
nele é a intolerância e o rancor que são servidos como prato principal, nunca a
paz e o perdão.
Por isso, se te for
possível, reconcilia-te ainda hoje com o teu semelhante, ponha perante ti e ele
uma mesa, e conclame a Deus como tua testemunha deste ato de grandeza. Sim,
amigo, faça isso enquanto ainda há tempo, pois talvez chegue o dia em que a tua
mesa seja apenas feita de lonjuras e distâncias e nela tu estejas completamente
só...
Paulinho Almeida.
#TempodeVersos.
06.03.2.015.